Sempre gostei de viajar no tempo, de ir lá no fundo de minhas memórias e de lá resgatar fatos, lembrar pessoas, reviver emoções. E sei que não sou só eu! Todas as pessoas com as quais convivo e que já tenham passado por mais de 50, 60 dessas estações do tempo, sempre me afirmam esse mesmo gosto.
Meu marido e eu, por exemplo, costumávamos ficar, já em seus últimos tempos de vida, relembrando e rindo de situações que até nos haviam parecido difíceis quando de suas ocorrências, mas que então, vistas através de um outro prisma, multicolorido pela passagem do tempo, tornavam-se pitorescas, até engraçadas.
Nos dias mais quentes do verão, buscando um pouco mais de frescor, costumávamos sentar-nos no terraço, ao cair da tarde, em longas conversas, quando eu aproveitava para colher material abundante para muitas crônicas, ouvindo as histórias de meu marido que, como todo bom mineiro, era um maravilhoso contador de “causos”, e coisas de sua terra. Numa dessas tardes, por exemplo, falávamos sobre nossos netos, sobre como Gabriel, na época com 6 anos, um garoto carinhoso, gentil, amante da paz, tinha em seu pequeno irmão César, de menos de 4 anos, um defensor ferrenho, que sempre tomava sua defesa e que partia para cima de qualquer garoto que ousasse tentar agredir seu irmão. Como um assunto sempre traz outro, veio à baila uma história vivida pelo Bira que achei bem merecer uma crônica.
“Estudantes na Escola Agrícola de Barbacena, meu marido e meu cunhado, em plena adolescência, pequenos galinhos de briga, podiam ter lá suas diferenças, mas quando alguém mexia com um deles, estava comprando briga com o outro.
Numa determinada tarde, Ubirajara, meu marido, estava jogando bolinhas de gude com alguns outros garotos quando um menino veio correndo até ele dizendo:
- Bira, corre lá ajudar o Danilo que o “Cobrinha” tá dando a maior surra nele!...
Ao que meu marido teria respondido, todo cheio de empáfia:
- Vou só terminar esta jogada e vou mostrar pra’quele frangote o que acontece com quem se mete com a gente...
Dito e feito! Terminada a jogada, saiu correndo em defesa do irmão, mas... Levou ele também, a maior surra. O tal “Cobrinha” não era brincadeira, não! Humilhados, voltaram para casa jurando vingança, mas o tempo foi passando, eles foram crescendo, saíram de Barbacena, procurando novos rumos para suas vidas e o incidente ficou esquecido... Ou quase, porque no fundo de suas memórias havia o brio ferido, a humilhação de serem dois contra um e de terem apanhado pra valer.
Anos depois, em visita à cidade, avistaram alguém que lhes era familiar que vinha descendo a rua. Os irmãos se entreolharam...
- Mano, aquele baixinho ali, não é o Cobrinha?
- Ele mesmo, Mano, o safado... Vamos lá dar um susto nele?
Agora, homens feitos e já cheios de responsabilidade, aquela molecagem das brigas e dos desacatos já não fazia mais sentido. Queriam apenas fazer uma brincadeira com um velho camarada. Ambos muito altos, fortes, comparando-se ao antigo desafeto que não crescera tanto quanto eles, sabiam o que iria acontecer e já foram rindo por antecipação. Aproximando-se cada um por um lado, caras fechadas, cenhos franzidos, seguraram-no pelos braços, um de cada lado, e foram logo dizendo:
- Eu sou o Danilo, lembra-se de mim?
- E eu sou o Bira, está lembrado?
O outro, começando a empalidecer, preso entre aqueles dois homens que pareciam querer esganá-lo, gaguejou:
- Claro, claro que me lembro, mas o que houve?
- O que houve? Lembra daquela vez que você deu uma surra em nós dois?
- Não, não me lembro disso, não, gaguejou o indefeso Cobrinha... Imagine... Eu bater em dois amigos?...
- Bateu sim e agora nos vamos tirar a forra...
Dizendo isso e antes que alguma coisa pior acontecesse, explodiram em estrondosas gargalhadas e, abraçando o antigo desafeto, que ria aliviado, foram todos comemorar o encontro e a “vingança” numa rodada de cerveja num bar da cidade."
Não seria maravilhoso se todas as vinganças terminassem assim?...
PS : Esta crônica foi escrita e publicada no site do Bira, pouco antes do seu falecimento, e é postada aqui, hoje, com ligeiras modificações nos tempos verbais, mantido porém na íntegra seu conteúdo que os irmãos garantiam ser verdadeiro, palavra por palavra. Mais um desses deliciosos causos que meu amor adorava contar e relembrar em nossos momentos de bate-papo..